Por Redação
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20 de abril de 2025
Quando se fala em terroir no universo dos cafés especiais, muito se discute sobre altitude, tipo de solo, clima e processos pós-colheita. Mas o que pouca gente explora com profundidade é como essas variáveis naturais se traduzem em experiências sensoriais distintas — e como o cérebro humano interpreta cada uma delas. O mesmo grão cultivado em solos diferentes pode gerar reações neurossensoriais completamente diversas, ativando memórias, emoções e preferências únicas. A ciência agora está começando a explicar por quê. No centro dessa investigação está Deborah Veneziano, uma profissional que une três campos raramente vistos juntos: enfermagem, engenharia de alimentos e análise sensorial com base em neurociência. Barista e criadora do projeto itinerante Duelo dos Cafés, ela vem percorrendo o Brasil com um propósito ambicioso: ensinar, de forma acessível, como diferentes terroirs influenciam a percepção do café, conectando dados químicos, resposta sensorial e neuroplasticidade. Seu trabalho atual envolve uma comparação inédita entre cafés brasileiros, etíopes e bolivianos. Mais do que uma análise de sabor, Veneziano busca entender como o terroir atua na rota neurossensorial do café — da língua ao cérebro — e como fatores como acidez, corpo e retrogosto são processados cognitivamente por consumidores de diferentes perfis. “É uma experiência que une química, cultura e neurociência em cada gole”, explica. Utilizando métodos inspirados em pesquisas de neurociência comportamental, Deborah analisa como o sistema nervoso responde a diferentes perfis de café. Cafés florais e cítricos da Etiópia, por exemplo, tendem a estimular áreas cerebrais relacionadas à atenção e à curiosidade sensorial, enquanto cafés bolivianos, com doçura limpa e corpo médio, ativam sensações de conforto e prazer mais rapidamente. Já os cafés brasileiros, com sua enorme diversidade regional, geram mapas sensoriais muito variados, reforçando o papel do terroir e do processo no produto final. Para ela, o terroir vai além do que se planta — é uma assinatura que o cérebro aprende a ler. “O consumidor não percebe só o sabor, mas toda uma construção sensorial mediada pela memória e pela expectativa cultural. A origem do café influencia até mesmo a maneira como o consumidor interpreta sua complexidade ou doçura”, afirma. No Duelo dos Cafés, evento que tem passado por diversas cidades do Brasil. Os participantes provam cafés de diferentes origens e anotam suas impressões sensoriais antes de saberem o que estão degustando. Em seguida, ela conduz uma análise cruzada com os dados técnicos dos grãos — desde altitude e perfil de torra até compostos voláteis — sempre à luz da percepção sensorial e do funcionamento cerebral. “É impressionante como as pessoas, mesmo sem treinamento, percebem diferenças sensíveis quando guiadas com conhecimento. Isso prova que análise sensorial não é dom, é educação — e o cérebro aprende rápido quando estimulado corretamente”, diz. O levantamento comparativo abrange cafés do Cerrado Mineiro, Sul de Minas, Etiópia e Bolívia. Ela avalia latência na identificação de notas, frequência de respostas positivas e mapeamento de zonas cerebrais ativadas durante a prova, com base em referenciais sensoriais. A proposta é inovadora: formar provadores que compreendam tanto o que sentem quanto por que sentem. Veneziano destaca que a percepção sensorial vai muito além de simplesmente sentir cheiros, sabores ou texturas: ela exige uma conexão real entre os sentidos, a mente e, sobretudo, uma abertura emocional para novas experiências. "Muitas pessoas acreditam que não têm um olfato apurado, mas o que costuma faltar, na verdade, é a sintonia entre o que o corpo percebe e o que a mente é capaz de interpretar. Essa atenção plena — o famoso 'aqui e agora' — é fundamental para desenvolver uma percepção mais aguçada e consciente. No entanto, a maioria de nós não foi educada para descrever o que sente; fomos ensinados a dizer se gostamos ou não de algo, sem necessariamente entender ou nomear as sensações envolvidas". "Sabemos apontar cores com precisão, mas raramente nos perguntamos se algo é ácido, doce ou amargo. Por isso, exercitar essa conexão entre sentidos e mente é o primeiro passo para reprogramar nossa forma de perceber o mundo. Antes de julgar um alimento ou bebida com um simples 'gosto' ou “não gosto', a pergunta essencial deve ser: “o que eu percebo e o que eu identifico?", ressalta. Um novo olhar para o café Mais do que uma barista ou especialista técnica, Deborah Veneziano é uma apaixonada pela forma como o café se comunica com o ser humano. Para ela, compreender o terroir é entender que cada xícara carrega um universo — natural, cultural e neural. “Quando a gente toma um café, não está apenas provando um líquido. Está acessando uma memória, uma sensação, uma resposta cerebral que o terroir ajudou a moldar”. A barista salienta que muitas pessoas têm dificuldade para identificar cheiros específicos. Por exemplo, esse café tem um aroma frutado. Ela enfatiza que não é necessário reconhecer a fruta exata de imediato. O ideal é criar trilhas sensoriais — associações que ajudam a ativar a memória olfativa. "A memória sensorial funciona como um arquivo das nossas experiências. Se alguém nunca provou mirtilo, por exemplo, não terá uma referência olfativa para ele. Por isso, é essencial diversificar a alimentação e experimentar novos alimentos para ampliar esse repertório sensorial".