Por Pérsio Landim
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10 de abril de 2025
A recuperação judicial, tal como disciplinada pela Lei nº 11.101/2005, constitui instrumento excepcional de proteção à empresa em crise econômico-financeira, desde que esta demonstre viabilidade, regularidade de suas atividades e boa-fé na condução do processo. Contudo, a crescente utilização indevida do instituto compromete não apenas sua finalidade, mas a própria segurança jurídica do sistema falimentar brasileiro. O caso do Grupo Safras é paradigmático nesse contexto. Com um passivo superior a R$ 2,2 bilhões, o grupo ingressou com pedido de recuperação judicial em Mato Grosso — o maior já registrado no Estado — omitindo documentos essenciais exigidos pela legislação vigente. A Lei nº 11.101/2005 estabelece, de forma expressa, a obrigatoriedade de apresentação de informações como balanços patrimoniais, demonstrações contábeis dos últimos três exercícios, extratos bancários, relatório do passivo fiscal e certidões dos administradores. A ausência desses elementos inviabiliza a análise criteriosa da situação da empresa e compromete o juízo de admissibilidade do pedido. A falta de transparência documental representa grave violação aos princípios da boa-fé processual e da confiança legítima, pilares do ordenamento jurídico. Quando o Judiciário admite o processamento de pedidos com vícios tão evidentes, abre-se um precedente perigoso, que fragiliza a confiança dos credores e desestimula o crédito no setor produtivo, especialmente em segmentos sensíveis como o agronegócio — duramente afetado neste caso. Há ainda indícios de desvio de finalidade no uso do processo judicial. Verifica-se, por exemplo, a tentativa do Grupo Safras de utilizar a recuperação judicial como meio indireto para manter a posse de imóvel industrial em Cuiabá/MT, mesmo sem qualquer título legítimo ou contratual que ampare tal ocupação. Essa manobra, além de configurar litigância de má-fé, evidencia o uso do instituto como escudo contra medidas legítimas, como o cumprimento de ordens de despejo, subvertendo completamente a razão de ser da recuperação judicial. Adicionalmente, surgem alegações sobre irregularidades financeiras e estruturais na condução da atividade empresarial, o que acentua a urgência de atuação rigorosa do Poder Judiciário. O deferimento automático de pedidos de recuperação, sem a análise estrita dos requisitos legais, gera instabilidade jurídica sistêmica, afetando não apenas os credores envolvidos, mas o ambiente de negócios como um todo. É fundamental lembrar que a recuperação judicial não é um direito irrestrito, tampouco um mecanismo de proteção indiscriminada. Trata-se de um benefício condicionado ao cumprimento de exigências legais objetivas, que visam garantir a lisura do processo e a igualdade entre os credores. O uso distorcido do instituto representa verdadeira afronta à ordem jurídica e à função social da empresa. Outro ponto igualmente relevante, e que muitas vezes é negligenciado nos debates iniciais, é a análise efetiva da recuperabilidade da empresa. O simples ingresso em juízo com um pedido não confere, por si só, legitimidade ou perspectiva real de reestruturação. É indispensável que a empresa demonstre concretamente que possui condições de superar sua crise — seja por meio de ativos, geração de caixa, carteira de clientes, acesso a crédito, estrutura de governança ou confiança mínima do mercado. No caso do Grupo Safras, o que se vê é uma empresa que, além de apresentar um processo eivado de omissões e possíveis fraudes, não dispõe de ativos fixos relevantes, não apresenta clientes consolidados, tampouco inspira confiança nos agentes econômicos. Some-se a isso a completa ausência dos controles empresariais mais básicos, como a relação detalhada de credores ou balanços auditados, e o cenário revela-se ainda mais preocupante. Nessas condições, a recuperação judicial não se configura como um meio legítimo de reestruturação, mas como um prolongamento artificial de um processo falimentar já em curso. Até o momento, o Judiciário tem se portado de forma exemplar ao rejeitar, por duas vezes consecutivas e com a agilidade que o caso exige, o pedido de recuperação judicial do Grupo Safras, justamente por ausência dos documentos e dos requisitos legais indispensáveis. Cabe agora manter essa firmeza. Mais do que nunca, é essencial que o Poder Judiciário continue vigilante e intransigente com manobras que, sob o pretexto de um processo de recuperação, escondem tentativas de driblar credores e maquiar responsabilidades com uma falsa aparência de legalidade. Não se pode permitir que a recuperação judicial — instrumento legítimo e sério — seja desvirtuada em benefício de quem tenta apenas ganhar tempo e escapar do caos que ele mesmo criou. O caso do Grupo Safras impõe uma reflexão profunda sobre os limites e a finalidade da recuperação judicial. A credibilidade do sistema depende da atuação firme e técnica dos magistrados, da vigilância dos órgãos de controle e da advocacia responsável, comprometida com a preservação da ordem jurídica e da boa prática empresarial. Afinal, a verdadeira recuperação só pode existir onde há seriedade, transparência e viabilidade econômica real. *Pérsio Oliveira Landim é advogado da Pérsio Landim Agro Advocacia, especialista em gestão do Agronegócio